O paradigma indiciário: entendendo a singularidade e importância das ciências humanas
- Labcom Univap
- 25 de mai. de 2020
- 5 min de leitura
Escrito por Rafael Lalli
O que Sigmund Freud, Sherlock Holmes e Giovanni Morelli (um crítico de arte do século XIX) têm em comum? À primeira vista, talvez você responda “nada”. Mas o historiador Carlo Ginzburg lhe pediria para olhar com mais atenção. Em seu livro “Mitos, Emblemas, Sinais” (1989), Ginzburg compara os métodos de cada uma dessas figuras para descrever um modelo de pensamento que, segundo o autor, embasa o conhecimento de todas as ciências humanas, mesmo que até o lançamento da sua obra esse princípio não tivesse sido explicitamente teorizado. Este modelo se chama “paradigma indiciário”.
Para melhor entendê-lo, convém primeiro olharmos para o autor que o definiu, e como a sua própria metodologia contém elementos desse conceito. Nascido em 1939 na cidade de Turim, no norte da Itália, Carlo Ginzburg se formou pela Escola Normal Superior de Pisa e é considerado um dos fundadores da “microhistória” - uma escola historiográfica que reduz a escala de observação e dá notoriedade a fatos “pequenos” que normalmente passariam ignorados por abordagens históricas mais amplas. Os proponentes da microhistória buscam, portanto, enxergar os efeitos macrohistóricos a partir dos eventos micro. A obra mais famosa de Ginzburg - “O queijo e os vermes” (1976) -, por exemplo, analisa as acusações de heresia contra um camponês italiano chamado Menocchio no século XVI para lançar luz sobre a vida cotidiana durante o período da Santa Inquisição.

É nessa lógica que Ginzburg se fundamenta para investigar as ligações entre Freud, Holmes e Morelli. Em “Mitos, Emblemas, Sinais”, somos apresentados ao “método morelliano” - uma forma de analisar quadros desenvolvida na década de 1870 pelo crítico de arte epônimo a fim de distinguir entre originais e cópias. O método consistia em “examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia” (p. 144). Assim, ao invés de focar em elementos muito marcantes, como os olhos de Perugino ou os sorrisos de Da Vinci, o examinador é aconselhado a prestar atenção nos “lóbulos das orelhas, as unhas, o formato das mãos e dos pés”.
Sherlock Holmes, por sua vez, ficou famoso por conduzir investigações bastante similares ao método morelliano em suas aventuras. O personagem de Arthur Conan Doyle frequentemente deduz os autores dos crimes com base em evidências imperceptíveis para outros observadores, como o formato de pegadas na lama ou as cinzas de um cigarro.
Fechando a tríade, o historiador demonstra que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, não só desenvolveu sua análise da mente humana com base no mesmo “método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (p. 149), como se inspirou em Morelli e admirava os livros de Sherlock Holmes. De fato, Freud chegou a escrever um ensaio intitulado “O Moisés de Michelangelo”, em 1914, em que elogia o método morelliano (p. 146-147), e manifestou a um paciente (“O homem dos lobos”, 1918) o seu interesse pelas aventuras do detetive de Conan Doyle (p. 150).
Podemos, portanto, compreender o paradigma indiciário a partir da comparação entre essas similaridades. Ele é, segundo Ginzburg, o método pelo qual “pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível.” (p. 150). De acordo com o historiador, esse paradigma começou a se afirmar nas ciências humanas no final do século XIX, mas tem raízes muito mais antigas.
Das sociedades pré-históricas de caçadores - que encontravam sua caça a partir dos indícios quase imperceptíveis deixados pelo animal no ambiente -, passando pela arte divinatória das civilizações da antiguidade - onde os sinais dos deuses eram lidos a partir de elementos da natureza, como as estrelas ou as entranhas de um sacrifício -, até as ciências humanas modernas, o paradigma indiciário sempre esteve presente como uma das formas de adquirir conhecimento. É claro que há muitas diferenças entre essas estruturas de pensamento, mas corre por baixo de todas um princípio comum: a decifração do todo pelas partes.
A ciência moderna em cuja história o paradigma indiciário talvez fique mais evidente é a medicina. Desde a fundação da filosofia ocidental, quando, na Grécia Antiga, decidiu-se buscar explicações da vida terrena sem recorrer a divindades, vemos a medicina hipocrática tentando compreender a doença a partir do sintoma (semeion). Como resultado, a medicina parece sempre ter sido perturbada pela impossibilidade de generalizar o seu conhecimento - afinal, cada doença se manifesta de maneira diferente em cada paciente, e a compreensão universal e definitiva do “corpo” nunca se faz plenamente alcançável (p. 155-156).
Apesar dessa dificuldade, a medicina sempre gozou de um grande prestígio entre as ciências. Não é à toa que as demais ciências humanas frequentemente empregam um tipo de lógica baseada na linguagem médica (vide o emprego por Marx da metáfora da “anatomia da sociedade”). Contudo, outra ciência alcançou desenvolvimento similar, dividindo com a medicina o posto de definidora de linguajar entre as humanidades: a filologia (o estudo da escrita). Segundo Ginzburg, a semiótica dessa forma de estudo era abstrata o suficiente para ser empregada com grande efetividade em outras áreas de conhecimento (p. 170).
Algumas ciências tiveram bastante sucesso no emprego dessas linguagens e do paradigma indiciário - foi o caso da paleontologia, por exemplo. Outras ficaram no meio do caminho, como a connoisseurship - tem algum reconhecimento, mas não o suficiente para ser tratada como uma ciência. Também houveram as que acabaram desaparecendo, como a frenologia. Ginzburg chega a propor que o leitor imagine as diversas manifestações do paradigma indiciário como um tapete: seguindo uma linha vertical, vemos a passagem do tempo na História; na horizontal, o referencial de “confiabilidade” de cada forma de conhecimento (p. 170). Podemos simplificar essa metáfora em um gráfico, composto pela variável “tempo” no eixo Y, e “confiabilidade” no eixo X. Assim, usando os exemplos do livro que destacamos aqui, teríamos algo como a imagem abaixo:

Mas por que, afinal, estamos falando do paradigma indiciário e traçando suas manifestações ao longo da História?
Tudo que discutimos aqui é abordado no terceiro e último capítulo do livro “Mitos, Emblemas, Sinais”, intitulado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. Ginzburg abre essa parte da obra afirmando que pretende “ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo’” com seu estudo (p. 143). Ele cita o advento do conceito galileano de ciência (p. 156), baseado na matemática e no método experimental, extremamente eficiente na quantificação de dados. Mas esse paradigma é antagônico à perspectiva individualizante das ciências humanas, que exclui por definição a repetibilidade de experimentos (p. 156). Ainda assim, as humanidades tentaram, por um tempo, aderir à tendência quantificante - com o surgimento de estudos como a estatística (p. 165) -, mas em troca tinham que abrir mão do elemento qualitativo das suas informações.
Entender essa diferença de paradigma entre as ciências humanas e as chamadas exatas (ou galileanas, na linguagem de Ginzburg) é essencial para compreender o funcionamento e a importância das humanidades. Não é de hoje que matérias como a história e a sociologia são atacadas por supostamente não serem “científicas”, já que seus dados não são quantificáveis da mesma forma que na física ou matemática. Mas, nas palavras do historiador, “vem a dúvida de que este tipo de rigor é não só inatingível mas também indesejável para as formas de saber mais ligadas à experiência cotidiana” (p. 178). O que Ginzburg demonstra em sua obra é justamente que o conhecimento qualitativo das humanidades é não só imprescindível, mas também elemento fundante da experiência humana, tão digno de reconhecimento quanto as abordagens quantitativas das ciências exatas. Uma valiosa lição a se relembrar.
REFERÊNCIAS
GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. Tradução: Federico Carotti. São Paulo: Editora Schwartz LTDA, 1989.
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