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Dia Mundial da Poesia: uma celebração da arte da linguagem

Atualizado: 25 de mai. de 2020

Escrito por Rafael Lalli.


“Mas o que quer dizer este poema? – perguntou-me alarmada a boa senhora.

E o que quer dizer uma nuvem? – respondi triunfante.

Uma nuvem – disse ela – umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo.”



Esses versos de Mário Quintana resumem toda a complexidade da tarefa de falar sobre poesia. É um esforço metalinguístico e metafórico, antes de tudo. Pensar a poesia requer ser poético – ao menos assim pensavam muitos filósofos, linguistas e (evidentemente) poetas que se propuseram tal desafio ao longo da história. É da natureza dessa arte ser, afinal, indômita e eternamente mutável: nalguns dias mar furioso, noutros porto seguro.


O dia 21 de março é o “Dia Mundial da Poesia”. A data, que marca o início da primavera no hemisfério norte, foi escolhida no final de 1999 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e foi celebrada pela primeira vez no ano seguinte. Desde então, a entidade tem buscado valorizar a produção e tradição poéticas ao redor do mundo. O Labcom resolveu comemorar o marco de vinte anos do evento discutindo a importância dessa forma de arte em nossas vidas e relembrando as obras imortalizadas de alguns dos grandes poetas nacionais e internacionais.


Para começar, é importante pensarmos sobre as raízes do entendimento contemporâneo da poesia. É possível traçar suas origens à pré-história (GOODY, 1987, p. 78) – o que pode soar estranho, considerando que aquilo a que damos o nome de História tem seu início marcado pela invenção da Escrita. E, afinal de contas, costumamos pensar a poesia como uma arte essencialmente literária. Contudo, a antropóloga Ruth Finnegan explica em seu livro “Oral Literature in Africa” (“Literatura Oral na África”, em tradução livre, 2012) que elementos poéticos como a rima, o ritmo e o lirismo podem ser encontrados nas tradições poéticas orais de caça de tribos africanas que persistem até hoje (FINNEGAN, 2012, p. 215-223). Se pararmos para pensar, perceberemos que alguns instrumentos de linguagem da poesia servem a muitos propósitos em comunidades não-literárias: da maior facilidade de memorização que eles possibilitam (o que ajuda a transmitir conhecimento de geração em geração), passando pelo sentimento de exultação que podem gerar (propício para elevar a moral de guerreiros a caminho de uma batalha, por exemplo) até seu caráter lírico propriamente (ideal para a glorificação de deuses e reis).


O advento da Escrita possibilitou que algumas sociedades começassem a registrar essas tradições poéticas orais em suportes fixos, atrelando nessas culturas os conceitos de poesia e letragem. Foi o caso do Épico de Gilgamesh, no Oriente Médio, dos clássicos Homéricos, na Grécia, das Vedas, na Índia, e do Shijing, na China – todos frutos de longos e ricos legados recitativos (e musicais, no caso chinês) que foram posteriormente filtrados e “tratados” a fim de serem suplantados em versões escritas “definitivas”.


Uma das tábuas do Épico de Gilgamesh (c. 1800 aC).

Já nessa época podemos notar a preocupação em entender o que exatamente é um poema. A Poética (c. 335 AC) de Aristóteles, por exemplo, é uma obra inteiramente dedicada ao assunto. Mas, se para os gregos antigos era possível delimitar com clareza o estilo e o sentimento que caracterizavam a poesia através da aplicação de princípios rígidos de metragem, temática e estética, essa definição vai ficando cada vez mais complexa com o desenrolar da História. A gradativa transformação das formas literárias locais, o contato entre culturas diferentes (e seus conceitos poéticos próprios) e talvez a própria natureza inquisidora da poesia foram expandindo os limites dessas determinações. Dos épicos gregos aos haicais japoneses, dos sonetos alexandrinos aos cordéis da literatura brasileira, as formas possíveis do poema foram gradativamente mostrando-se tão infinitamente diversas quanto as mentes por trás do seu processo criativo.


A partir do século XX, a própria ideia de “forma poética" derreteu, graças em grande medida à mudança radical de paradigma do modernismo, que chegou questionando qualquer estrutura rígida de compreensão da arte – daí os versos mais livres de Mário de Andrade, Raquel de Queiroz e Cecília Meireles, para citar alguns dos membros do movimento no Brasil. Nem a antiga separação entre prosa e poesia passou incólume – hoje são famosas as prosas poéticas de Baudelaire e Rimbaud, por exemplo. E o que dizer, então, dos limites entre o poema e as artes não-literárias, obliterados pelo advento da poesia concreta (materializada nas obras de nomes como o brasileiro Augusto de Campos e o alemão Eugen Gomringer)?


Poema conhecido como "Silencio", de Eugen Gomringer.

Mas o que é, afinal, a poesia? Se metragem, lirismo, rima e ritmo não são capazes de defini-la, seria ela alguma outra coisa? Talvez seja algo externo ao ser humano, uma energia misteriosa que se apossa do poeta, uma inspiração divina que o toma, como nos versos de “A Poesia”, de Pablo Neruda:


“Chegou a poesia

para me buscar. Não sei, não sei de onde

saiu, de inverno ou rio.

Não sei como nem quando,

não, não eram vozes, não eram

palavras, nem silêncio,

porém desde uma rua me chamava,

desde os ramos da noite,

de repente entre os outros,

entre fogos violentos

ou regressando sozinho,

ali estava sem rosto

e me tocava”.


Ou talvez não faça sentido separar a arte do artista, tratar a inspiração como uma elevação externalizada. Pode ser que ela seja o próprio olhar do poeta, o toque de unicidade do autor que dá vida a algo outrora inexistente – um suspiro, um sinal de presença, um signo da própria vida. Como diria Cecília Meireles em seu “Motivo”:


“Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

(...)

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.”


Ou, ainda, talvez ela seja pura construção. Algo que não tem um “em si” predeterminado, que não existe na natureza – alguma coisa que o poeta cria num passe de mágica, como uma ilusão que enfeitiça a mente e a faz crer no irreal. Algo como a beleza sobre a qual se questiona Fernando Pessoa (através do seu heterônimo Alberto Caeiro):


“Uma flor acaso tem beleza?

Tem beleza acaso um fruto?

Não: têm cor e forma

E existência apenas.

A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe

Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.

Não significa nada.

Então por que digo eu das cousas: são belas?”


Este texto não tem a pretensão de apresentar a você, leitor, respostas exatas. O objetivo aqui é convidá-lo ao debate, estimular o seu interesse pela poesia e seus infinitos significados. É lembrá-lo, neste Dia Mundial da Poesia, da natureza primaveril dessa arte que sempre floresce, não importa o inverno que a tenha precedido; do ímpeto criador e imaginativo que jaz em seu espírito. A palavra poesia tem sua raiz no grego poiein, que significa literalmente “criar, fazer, compor”. Se você enxerga nela essa essência, pouco importam as racionalizações que terceiros tentem lhe impor. Como certa vez disse Carlos Drummond de Andrade: “se você procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida”.



REFERÊNCIAS



GOODY, Jack. The Interface Between the Written and the Oral. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.


FINNEGAN, Ruth. Oral Literature in Africa. Cambridge: Open Book Publishers, 2012.



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